O TESTAMENTO DO ANDROIDE.

Velório é um ambiente muito propício para testarmos nossas habilidades sociais, mesmo se nem humano formos.


Caixa de Texto: Velório é um ambiente muito propício para testarmos nossas habilidades sociais, mesmo se nem humano formos.

Despertei de um sonho bacana, coisa rara. Eu era um cientista e tinha construído um androide, um robô em forma de humano. No sonho estava num dilema sobre onde testar o invento. Falta do que fazer na manhã do domingo – assistir globo rural, nem pensar – de caneca de café em punho, passei a imaginar alguns cenários nos quais poderia verificar se o meu invento passaria por humano e onde poderia aprender muitas coisas. Cheguei a uma lista de umas vinte possibilidades. Coisas como um ônibus lotado, interagindo com os passageiros, ou ascensorista de elevador, registrando todas as conversas e separando as pérolas, e por aí vai. Mas cheguei ao veredito de que o melhor de tudo seria um velório. As emoções aflorando. Desespero, indiferença, tédio, conversa fiada, piadas. De tudo. O ideal seria o androide misturar-se com as pessoas e puxar conversa. Em velórios sempre se faz perguntas ou se conta uma história pessoal; pessoal, mas que se passou com outra pessoa. Perguntas, isso seria bom. Indagar a idade do finado ou a que horas vai ser o enterro seria evitado pelo cérebro avançado do robô. Essas informações iriam acabar por surgir nas conversas. E além do mais, geram respostas muito curtinhas. Nem resposta, só uma informação. Morreu de quê, é uma boa pergunta. As pessoas dão o diagnóstico, a causa mortis e contam a história inteirinha, com todos os detalhes que ouviram dez minutos antes e vão repetindo com prazer, parecendo ser íntimos da família. Alguém vai perguntar quem é o distinto desconhecido, mas aí é fácil, é só o meu invento dizer que agora é um cardiopata, que o finado está levando uns nacos do seu coração, grande amigo que era. Pronto, calou o curioso.

Perguntar quantos filhos irão chorar à beira do caixão, também é oportuno. O desavisado sempre vai tecer uns comentários sobre cada filho, apontar a esposa do primogênito, o caçula da filha, aquele menino lindo de olhos azuis, que teve leucemia há uns anos atrás, mas graças a deus, ficou curado, meninão forte.

Se o interlocutor for evangélico, da mesma igreja do finado, bom perguntar pelo pastor, a que horas vai dar o ar da graça. Certeza que vai falar do pastor por uns vários minutos, apontar pessoas e contar que o pastor salvou o casamento deste, recolheu aquele da rua, tirou aquele filho das drogas e por aí vai. Rende conversa certa.

Depois, no final do velório, quando todos estiverem intrigados com este estranho, que agora já goza da simpatia de muitos, pois deixou cada um contar suas histórias, alguém mais próximo do finado vai vir questionar. Talvez um genro. Aí é só o robô contar que não conhece o finado não, mas que estava nas proximidades e uma força misteriosa o obrigou a vir até ali no local do velório, entrar e transmitir uma mensagem do finado, a quem ele nem conhecia. O recado é para todos deixarem de briguinhas, para se unirem, para confortarem a viúva, pois que ele, o finado, está bem e feliz pro lugar que está indo. Aí o familhedo vai chorar emocionado, vão agradecer a criatura pelas palavras, pelo serviço, e quem sabe não se matem no dia da leitura do testamento. 

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