SÓ UMA CASCA.

A morte nos espreita sempre. Recusamos a dar-nos conta disso, fugindo até mesmo da morte dos outros.


SÓ UMA CASCA.
Durante o mês de novembro a coluna O Cotidiano apresenta uma série de narrativas sobre a finitude humana. Acompanhe!
Capela e cemitério São Rafael, Rolândia, PR.

A sombra do antigo pé de jabuticabas oferecia um certo conforto naquela tarde quente e abafada. As bolinhas pretas grudadas no tronco, ofereciam um sabor adocicado com fundinho amargo que ajudava a enganar o comecinho de fome.

O Carlos chegou, mascou uma jabuticaba e ficou mirando o chão, como se tivesse escolhido a mais amarga delas. Nem era isso. É que ele precisava contar que estava com câncer. Os dias passaram, quimio, radioterapia andando e a doença avançando sobre os ossos.

Por vezes eu recebia uma ligação e corria até sua casa. Ele, em posição fetal, imóvel. Ajudava a medicá-lo, colocava a mão no ombro dele como se tentasse puxar um pouco daquela dor para mim, a fim de aliviá-lo um cadinho. Aos poucos o analgésico fazia efeito ele ia se desenrolando e dizia que era aquela dor azul, a pior de todas. Chegava a ver a cor, de tanta dor. Nunca entendi por que era que quando eu ia dar o remédio, ele fazia mais efeito.

Ou nem era só o remédio?

Meses de sofrimento depois pediram para irmos ao hospital. Já entendi. Fui lá.

Disseram que estava afivelando a mala. O fim do sofrimento iminente. Empaquei no meio do corredor. Não tive coragem de avançar, de entrar no quarto e dizer o adeus. Sai com a desculpa que não queria guardar aquela imagem de despedida.

Era nada. Hoje sei bem. A questão é que a morte já estava lá, sentadinha naquela poltrona de canto. Eu sei que só podemos ter o conhecimento e a experiência da morte alheia.

Se experimentarmos a própria morte, aí já não dá para contar para ninguém. Mas entrar lá e ficar fazendo de conta que não via a morte ali sentadinha pacientemente, não dava.

Só entrei mesmo quando o biombo já estava cercando um corpo inerte, sem o querido amigo dentro. Naquele instante pensei que sem a genialidade e criatividade do amigo, este mundo já estava um tantinho mais óbvio.

Depois, velório, enterro, isso tudo. Dolorido ver os familiares e amigos já antecipando a falta. Mas a morte não estava mais lá.

Sobrava só um corpo, que pouco lembrava de quem estava dentro dele. Um cadáver, nada mais que isso. Uma casca que já não servia mais. Aí ficou mais fácil, nesta certeza da ausência física da morte. Aí choramos, contamos piadinhas de velório, tomamos cafezinho, qualquer coisa pra, enfim, para não pensarmos na nossa própria vez, na nossa própria morte.

 


Áudio: trabalhos técnicos de Élson Ferreira da Silva – UEL FM.

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