SERTÃO ADENTRO.

Visitar os lugares desse Brasil plural, nos ajuda a entender melhor nossa ‘aldeia’ local.


Ontem Marcos e eu assumimos ir pro sertão,  cer-tão, ser-tão, ou algo assim, desse Ceará. Mas onde é isso? Consultei o Totô.  Mas é tanto nome, tanto lugar estranho, tanto é, não é … ainda não sei não.  Fomos pra Caponga,  pro Dallas Sallon da francesa amiga do Marcos. Muito afetuosa, recomendou Redenção,  que ela pronuncia numa fala que não consigo reproduzir. Vai? Fomos. Afinal, o que é esse sertão? Se atiramos pela rodovia CE 253 mirando oeste, rumo a Guanacés, passando Pacajus. Ali já sumiu o cheiro do sal do litoral e quanto mais eu olhava a paisagem, mais sentia o cheiro de pólvora.  Ontem a noite o amigo Totô, o ser mais cearense que eu já conheci, me advertia que dentro do sertão tem muito cabra valente, com mortes nas costas. Me protege lampião,  me acompanhe meu capitão.  A cidade já ferve a 2a feira, inda de manhã cedinho. Ê Brasil! A caatinga come solta pela berna da estrada. Os buritis acenando felizes, curiosos com os visitantes.

Em Acarape a mula estacou. É apear e ver o que tem. Primeiro é descobrir como se lê o nome do lugar de gente pouca e movimento menos. Ainda tô atordoado pelo esplendor do nada da estrada. Por vez uma reta em que se conta quatro lombas e a serra lá na frente, no logo ali que não chega nunca. “O sertão é o mundo”, ele muda mesmo de lugar, “feito cobra coral”.  Essa serra tá é nas carreiras de nós.

Escadaria de Redenção, CE.

O Marcos está lá,  mosqueando escondido atrás dos cliques com o celular. Acho que o Leandro convenceu-o a ser fotógrafo. Coisa assim. Na praça da igreja dois  locais olhando a manhã passar na rua da vida, vão jogando beijo de adeus a cada minuto que parte. “Moço,  mais três quilômetros e ocês tão em Redencão”. Dali mesmo mostra no alto do morro o indefectível Cristo carioca copiado no sertão e abaixo o empilhadinho de 700 degraus. “Lá de riba se vê até o mar”. E desse sertão,  de onde não se vê o mar? Imaginei subir aquilo tudo pra matar a sede lá em cima, e …  ver mar nenhum. O sertão nunca está no mesmo lugar, e o mar, vai estar?

Enquanto o Marcos  bebia água e fotografava a melancolia que viu no parquinuo de cavalinhos, fui mastigando as aulas que tive no caminho. O Marcos alinhando um rosário que começa no antropofagismo, é espremido pelo tropicalismo,  contracultura e leva um crucifixo no final, com o Oiticica pendurado nele.

Já em Redenção,  é ver o monumento da negra liberta, nua e crua, que subir degrau e degrau, só fazendo mais um pecado antes. Ou dois. Tem o museu senzala negro liberto. Vai? Bom, aí tem o título de primeira cidade a libertar os escravos no Brasil, cinco anos antes da Lei Áurea… o engenho, a casa grande com as velharias, a senzala embaixo, com o sofrimento do negros e a patifaria do branco.  Mais instrutivo mesmo foi o mercado. Lotadinho de coisas que só se vê nestes mercados populares. Comprei foi de tudo. Chinelinhas de couro; farinha de castanha de caju; um cachimbinho feito de raiz,  pra preto véio nhum botar defeito; vasos de casca de coco seco; pratos de folha pintados de azul ou de vermelho. Vichi, a janta já ficou foi gourmet no prato de folha, regado na manteiga de garrafa e puxado na pimenta curtida no leite. Vai imaginando, vai, mas só vendo pra saber! Outras coisinhas pra cá e pra lá e só então é que fomos pro museu senzala. Inverti a ordem não,  o sertão é que é assim. Aparece e some. Lá no museu topamos com um casal de gringos e o Paulo, taxista da praia do Cumbuco. Quando for lá procure por ele que até a língua das estrajas dos holandeses ele fala, só que em inglês mesmo, que o sertão é  assim mesmo. Nos faz uma proposta: “me segue aí que em 50 minutos estamos almoçando lá em cima da cachoeira, nos pés de Guaramiranga”. E toca atrás.  E foi Atapai,  Antônio Diogo, com os pacotes de cajus e sapotis na beira da estrada. É tempo dessas frutas não,  mas isso é o sertão. Aqui já tem o que não é o agora. É temporão. Araçoiaba, Baturité. E cadê o sertão, a caatinga,  o buriti?  Não dá mais não.  Agora é a serra e mata atlântica.  Isso no sertão? É. Sertão é em todo lugar. Sobe, sobe. Curva, curva. Já passou, mas ainda não chegou não. É o sertão da mata atlântica. Quem quiser ver é só ir lá.  Se estiver lá,  dá pra ver. Ah! A cachoeira. Tiro a catiça do corpo,  lavado naquelas águas geladinhas de tanto esfregar pedra. O rio é o Labirinto. Nome bonito. Mas o sertão não é um labirinto?  Só quando ele quer.

Guaramiranga, surpresa é pouco! Na entrada, um cartaz enorme: festival de blues e jazz. Hem? Ah! É só no carnaval, que nos outros meses tem outras coisas. Festival de teatro, oficina de fotografia, festa do vinho, gastronomia, e vai. Isso não é coisa de sertão moço. Mas o sertão nem é aqui. Aqui é o serrano. Serrano é o sertão esticado pro céu. Adoramos a cidade das flores, como  se auto intitula. Serrana, mas o baião de dois excelente que comemos, é do sertão. 

Vista do alto do Pico Agudo, Guaramiranga, CE.

E o recanto dos capuchinhos,  com a igreja e a pousada? Fica pra próxima,  com pernoite e tudo. Toca rumo a Pernambuquinho. Quando chegar no Forquilha, quebra a esquerda pro Pico Alto. Ah não.  Vamos quebrar a direita primeiro. No sertão é pegar o rumo errado que dá certo. Fomos bater em Pernambuquinho.  O moço espera o ônibus no banquinho. Vai pra Fortaleza. Vai? Vai. Mas chega quando? Agora é voltar pra trás e sobe, sobe, curva, curva. Sobe,  sobe, curva, curva, sobe até  os 1.115 metros de altura. Ah, é asim que Deus vê o mundo? Lindo é pouco. A cada rodada de pescoço uma paisagem diferente. Não vou contar não.  Vai lá pra ver. É só ir subindo. Lá nos pícaros,  nas alturas, o que de mais apropriado se pode fazer? Ouvir o Marcos  falar dos três volumes da biografia do Nietzsche.  Aqui no alto o filósofo faz mais sentido. Agora desço esse labirinto em espiral de uns quatro quilômetros com esse zumbido de idéias rodando na cabeça. Parece que é o sertão se enfiando cabeça a dentro.

Na volta paramos para comprar orquídeas de uma artesã  e sua mãe,  na beira da estrada. Isso que é uma dupla de nordestinas autênticas.  Por isso moram aqui,  tipo dois buritis fincados numa vereda. Olhar duro, sorisso doce. Diz que só vende o que está autorizado. Só orquídea e bromélia caída,  enfeitando o artesanato de cipó. Porta malas lotado por uma nota de cinquenta. Penso na justiça disso e logo sinto cheiro de pólvora.  Mas em compensação, a vendedora, encantada, pede  licença ao Marcos para elogiar o céu que ela vê nos olhos dele.  Vou comentar o quê? Nada!

Parada de viajantes à beira da CE 020.

Chegamos no sitio com as estrelas piscando despertas. Totô mais Regina esperando pra abrir o portão. Eu queria arrancar o sertão do corpo, fosse um gibão de couro e depositar tudo na sabedoria sertaneja do Totô pra ter alguma explicação,  encontrar algum sentido nesse dia percorrido. Nem sei como fazer.  Melhor mesmo é ajeitar o jantar, fechar os olhos para ignorar o sono. Só de olhos escuros, pro sertão sair pelos poros da gente.  O Totô certamente diria que é a mãe de poeira da farinha, que “presta não”, que tem que ser tirada antes da crosta, pra dar goma boa pra tapioca. Cer-tão. Certinho,  então! 

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