AS LANÇAS DO CREPÚSCULO.

Os indígenas Jivaro eram hábeis na técnica de reduzir cabeças. No Brasil esta prática parece persistir.


Obeservação: O áudio não contêm parte do texto, por imposição do espaço na rádio.

Caixa de Texto: Os Jivaro, indígenas amazônicos, eram hábeis na técnica de reduzir cabeças. Esta prática ainda existe?
Mulher da feira indígena de Otavalo, Equador, com suas vestimentas típicas. Na floresta eram hábeis praticantes do escambo. Fora da floresta aprenderam o comércio.

Nesses dias bati um recorde pessoal. Cheguei ao final de um livro de 520 páginas, cuja leitura iniciei há pouco mais de um ano. Ou seja, na média venci uma página por dia. E olhe que está traduzido para o português. Aliás, bem traduzido. É, foi um recorde negativo, mas está valendo.

Comecei a leitura por estar interessado em aspectos históricos e culturais do Equador, onde eu estava prestes a passar algumas semanas. Porém por três noites seguidas dormi mal. Os dias giravam normais, mas as noites eram de sono profundo e povoado por inquietações e eu encontrava o sol matinal com os olhos pesados, como estivesse de ressaca. Descobri ser efeito do conteúdo do livro As Lanças do Crepúsculo. Já lá pela metade, lia capítulos que narravam as pajelanças e as guerras dos indígenas Achuar, da tribo Jivaro. Povo que na década de 70 do século passado, praticamente não tinha contato com o mundo. Iniciava-se um assédio dos evangelizadores americanos na região de fronteira do Equador com o Peru. O antropólogo francês, autor do livro, e sua esposa, passaram três anos de noites mal dormidas, vivendo com os Achuar e eu não aguentei as três noites lendo os relatos. Outros tempos, outro século.

Na segunda semana no Equador, conheci a cidade de Otavalo a 90 quilômetros de Quito, serpenteando os Andes abaixo, curva e só curvas. Duas horas para descer somente 300 metros, duma altitude de 2.850 para 2.500 em Otavalo. No sábado fui à feira indígena. As coloridas miçangas envolvendo o pescoço e pulsos evocaram os Achuar do livro do Philippe. Fiquei feliz por saber o significado dos adereços e entender que estão comerciando na feira com base nos conhecimentos do forte escambo que praticavam na floresta.

Réplicas de cabeças humanas reduzidas, simbolizando o costume Jivaro, para usar como amuleto.

Logo depois, numa banca, réplicas da famosa tsantsa. São cabeças de pessoas reduzidas para cerca de 20% do tamanho normal. Esta é uma técnica exclusiva dos Jivaro. Não obstante outras etnias tivessem o costume da decapitação, somente eles reduziam as cabeças dos inimigos e as mantinham como amuletos. Por isso da venda das réplicas, seguramente ainda são tidas como sinal de boa sorte. Eu não pude comprar uma. Pareciam muito reais. Como eu ia explicar isso em casa? Não encontrei forma de inventar uma historinha que evitasse de a Tsantsa ir parar no lixo.

Os Jivaro conseguiam esta redução da cabeça, retirando o couro e cozinhando em fogo brando; extraindo os olhos, cérebro e musculatura e colocando pedras e areia fervente dentro do crânio, o que ocasiona a redução da caixa craniana, mas mantêm intacta a estrutura. A pele também precisava manter a fisionomia do inimigo e assim acontecia, segundo os conhecimentos daquele povo. Todos os orifícios eram fechados, mantendo o espirito preso no interior da cabeça. Antes de recolocar a pele, esta era escurecida com aplicação de ervas. Pronto, a energia, a valentia do inimigo pertenciam ao seu algoz e o espirito, agora prisioneiro, originava boas colheitas e fertilidade às esposas do bravo guerreiro. 

O uso de colar de miçangas coloridas no pescoço e pulso servia de proteção contra os males enviados pelos inimigos.

Voltei a ler o livro nestes dias de pandemia devido à tristeza de acompanhar as notícias dando conta de que tribos indígenas isoladas na Amazônia estão sendo acometidas pelo Covid. Os Jivaro acreditam que as doenças são oriundas de “flechas” (tsentsak) invisíveis que poderosos líderes espirituais, indígenas ou não, despacham para atingir seus inimigos.

No fim não é isso que estamos fazendo com os nossos indígenas? Estamos enviando até eles uns seres invisíveis, que nós denominamos de vírus e que estão ocasionando doença e morte, mais uma vez. O pior é que tem povo das cidades comemorando no planalto central e nas bordas das áreas de reserva indígena. Quanto menos habitantes da floresta, melhor.

Agora, 19 de junho de 2020 às 21:22 horas, temos no Brasil 211.671.251 brasileiros, incluindo os indígenas, segundo o IBGE. A população bovina não conta com números tão precisos, contudo temos praticamente um boi por brasileiro no nosso território. Precisamos de mais bois e de mais espaço para esses quadrupedes. É os indígenas liberarem espaço. Falando em quadrupedes, surge o questionamento, será que isso de reduzir as cabeças era mesmo uma técnica só dos Jivaros? Não teremos alguns brasileiros entre nós com a capacidade de redução de cabeça também? No caso a de redução da própria cabeça, como se isso fosse uma evolução, uma atualização da prática dos Jivaros. O pior é que pode ser que essas cabeças reduzidas sejam dadas a formular e sancionar as Leis que nos regem. Pátria Amada Brasil.

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Livro As Lanças do Crepúsculo: relações Jivaro na Alta Amazônia, de Philippe Descola, com ilustrações de Philippe Munch e tradução de Dorothée de Bruchard. Cosac Naify, 2006, 520pp.

Áudio: trabalhos técnicos de Elias Vergenes, UEL FM.

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