Com as mídias sociais estamos sempre em ‘contato’ com todos, mas já não sabemos nada sobre aqueles que amamos.
A lembrança da infância nos traz algumas boas recordações. Sons domésticos, cheiro das árvores do quintal florindo na primavera, do leite fervendo no fogão. Mas lembro-me sempre de dois apitos, o do sorveteiro e o do carteiro. Eu conseguia saber quem deles estava fazendo o barulho. Quando era o sorveteiro, corria com àgua na boca e uma moeda nas mãos. Voltava feliz com o picolé de groselha de 10 centavos.
Se o apito era o do carteiro, o Fiel soltava o seu latido grosso de pastor alemão, como que espantando qualquer má notícia. Eu corria até o portão na esperança de uma carta da vovó, da madrinha de Santa Catarina ou dos primos, avisando que viriam para o Natal.
Às vezes voltava cabisbaixo, pois o apito entrou em casa, mas a carta, só pro vizinho.
A passagem do carteiro era um acontecimento revestido de expectativa. Sua passagem era quase um momento mágico, uma ligação com o mundo. E lá seguia ele com a sua bolsa à tiracolo e o apito barulhento.
Mas tudo mudou. O carteiro que passava uma ou duas vezes na semana, hoje passa todos os dias. As correspondências que demoravam dias e até semanas, hoje chegam até as 10 horas do dia seguinte. O apito do meu carteiro, saiu de moda, embora ainda me lembrem um canarinho quando os vejo com seus uniformes amarelinhos. Mas a mudança pior está nas suas sacolas. Neste mundo instantâneo, na bolsa do carteiro não cabe mais uma notícia. A comunicação se faz no que chamamos de tempo real, via mensagem no celular mesmo. Depois, não temos tempo para encher 4, 6 ou 8 folhas de caderno com nossas histórias. Uma foto já é o suficiente.
E o que sobrou para a bolsa do carteiro? O que tem dentro?
Ah, como eu torço pro bom moço de uniforme amarelinho não parar na minha calçada. Como eu queria ter o Fiel ainda comigo para avançar sobre o carteiro que estaciona sua bicicleta no meu portão. Cada vez que ele vem, e ele vem todos os dias, eu fico um pouco mais endividado. Mais uma conta, uma multa, um lembrete do corte da energia..
Meu caro carteiro, como eu queria que a sua bolsa parasse só no vizinho. Ou melhor, como eu gostaria de ficar contente ao vê-lo, que meu coração desse um pulo pensando nas pessoas queridas que estão escrevendo para mim, compartilhando suas histórias através de uma carta.
Mas isto é só saudosismo de um tempo passado. Quer saber, bem que podia ser proibido carteiro na minha rua.
Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima.
O material que ilustra esta narrativa faz parte do projeto da Grafatório, de Edição fac-similar, de Novos Contos, do cineasta Rogério Sganzerla, publicado originalmente em 1954. (vide grafatorio.com)