Apesar de saber que a vida está indo, precisamos manter um gancho com nossa vidinha, mesmo que seja só a imagem de um chinelo sob o leito moribundo.
Posso dar a notícia? Você está sentado? Então aí vai. O Celso tem câncer. E já é coisa feia. Está há tempos no hospital, só esperando a morte afiar a foice. Por outro lado, a família diz que ele anda muito desanimado. Fui lá. Engoli seco. Voltei mais outras vezes, em horários que não tem familiares com ele. Então o Celso resolveu se abrir um pouco. Era isso que eu temia, mas também estava procurando mesmo, né?
Definitivamente, não é o câncer que está apavorando o Celso. Assim também não é a morte certa que o preocupa. Nem mesmo este finalzinho que escorre. Pois parece que sua vida está melhor agora. Está de bem com toda a família enrolada que lhe coube nesta jornada. Olhe, eu quase digo que ele está em paz. Mas tem umas coisinhas que ele confidenciou. Coisa estranha, que só os olhos de moribundos podem ver. Os olhos não, o coração. Juro que fiquei arrepiado.
O que o Celso quer é só e tão somente, que mudem um pouco a rotina do hospital. Então ele dizia, “não posso receber o jantar e depois o banho. Em casa, sempre tomo banho primeiro, janto depois”. Isto saiu dele de forma muito esquisita. Como se fosse um parto. Saiu com toda a vergonha que ele pôde sentir ao dizer isto.
Mas continuou, depois de longos minutos de silêncio ofegante para se recuperar. “não consigo admitir que acendam todas as lâmpadas de madrugada para me dar um medicamento. Quero dormir um pouco. Afinal, não dava para acender só a do banheiro? Não podem ver que estou vivo?” Nova interrupção. Retorna a respiração difícil.
Pensou, e então continuou: “Ô Nilson, deixa isto pra lá. Não tem importância não. Eu só precisava falar disto com alguém que não fosse fazer o maior escarcéu”. Parou. Resfolegou, resfolegou. Retomou: “mas tem uma coisa que você tem que conseguir para mim. Preciso que minhas chinelas fiquem embaixo da cama. Eu não vou me levantar mesmo. Não vou andar. Mas preciso saber que elas estão ali, que ainda são minhas, à minha disposição. Eu me viro e olho, toda hora. Tiraram elas. Então eu continuo procurando, angustiado. Sem as chinelas, já estou morto, mas não posso descansar”.
Pedi as chinelas. Trouxeram, logo depois saí, fui à loja de conveniência onde comprei uma cola daquelas porreta. O pessoal da limpeza deve estar até agora tentando desgrudar as chinelas do piso.
Não ia dar pra explicar, ia?
Áudio: trabalhos técnicos de Élson Ferreira da Silva – UEL FM.
