A APOSENTADORIA DO NOÉ.

Os comportamentos humanos diversificam-se e a segurança de certo-errado, dá lugar ao acolhimento das diferenças.


A APOSENTADORIA DO NOÉ.

Noé está aposentado há quatro mil anos. Marinheiro não fica longe da água, a pescaria é a sua diversão. A esposa vai tirando as escamas, limpando os corpos e fritando o colhido.

O chefe convoca e expede instrução.

– Noé, meu velho. Dês uma mão de tinta no barco, uma engraxada nas ferragens e vá ao Brasil. Aquilo está um pandemônio, Noé. É coronavirus, corrupção, desgovernos, sem vergonhices, epidemia de crack, abundante falta de educação. Noé, aquilo acaba em nada, estão queimando tudo, homem.

Pintura sobre lona, artista plástica Regina Abromawischos, distrito da Warpa, Tupã-SP.

O serviço o velho barqueiro já conhece. Prestativo, vai até a terrinha. Passa dias na labuta. No fim de semana, volta a falar com o patrão. Resolve aguardar a segunda-feira. Sabe que o mandante tem o pré-histórico hábito de descansar aos domingos.

– Meu chefe, desculpe trazer transtorno. Aquilo está mesmo bem desarrumado, mas fui tocando o serviço, gastei uma semana. Separei os casais de animais, tudo nos conformes. Menos os que não encontrei, uns que se acabaram. Tudo certo. O que existe está garantido. O problema foi com o tal do homem, imagem e semelhança do meu patrão. Fiz o chamado. Um casal se apresentou. Eram duas mulheres. Eu não entendi aquilo. Mas mostram um documento repleto dos timbres, carimbos, assinaturas. Uma tal de Declaração de União Estável. Garantiram que está tudo nos conformes.

– Chamei outro. Dois rapazes de mãos dadas. O próximo, eu gritei, vem um moço sozinho. Alegou que é casal consigo mesmo, que ele se basta.

– Outro apresentou-se com duas mulheres e o reconhecimento de um juiz, de, espera aí, deixa eu ler a anotação, união estável paralela ao casamento. A hora que eu olhei lá pra baixo e vi um jovem puxando uma corda com uma cabrita na outra ponta, aí eu fechei as portas.

– O patrão vá desculpando, estou há muito tempo afastado do trabalho, não dou conta de entender essas prosopopeias todas. Nem a patroa conseguiu ajudar. Precisei incomodar o Senhor. Seria melhor desovar um dilúvio naquilo tudo, inundar nos modos de antigamente e fica resolvido. O patrão me diz o quê?

– Noé, não apoquentes o teu coração. Marinheiro não complica a travessia, lembres que são meus filhos. Acomodes todos na arca e pronto. Depois vens aqui e fazemos uma revisão na tua aposentadoria, que já é em tempo.

– Então, meu chefe, vou fazer duas viagens, a primeira com os bichos. Aí descarrego aqui em cima, nos conformes. Na segunda viagem trago os casais. Aí o patrão decide se eu descarrego aqui ou lá em baixo.

Mas aí o manda-chuva já esqueceu a delicadeza e o palavreado florido.

– Noé, filho de Deus, para de complicação e completa a carga, homem.


Áudio: Trabalhos técnicos de Elias Vergennes – UEL FM.

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