Estamos sempre a caminho de algo inusitado, inclusive do fim. A forma como conduzimos este caminhar é que faz a diferença.
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A MARRETA DO DOCE SANGUE.
Vou descendo a rua. O sol insuportável. Há muita claridade, quase não posso enxergar.
Meus passos vão margeando o grande e mal caiado muro branco.
Ouço mais e mais forte, o berro dos bois por detrás do muro. Até que param.
Agora só um animal está berrando. Estranho. Parece que está nos meus ouvidos, como fosse o eco do que eu ouvia antes. Curioso, subo no muro e o cheiro de sangue esbofeteia meu rosto.
Vejo os animais enfileirados para o abate. Todos com as pernas muito abertas, a cabeça baixa, o rabo pendendo até o chão. Todos brancos, branquinhos, com suas orelhas pequenas e pendentes, como se elas mesmas fossem os brincos.
Apenas uma novilha se bate, berra revoltosa. Tenta escapolir por sobre a cerca, pelo meio, por baixo. Animal incontrolável.
Fico assistindo! Vejo à frente da fila o algoz que vai pôr fim à agonia de cada um.
Descansa a marreta no chão. Vejo que está massageando as genitais por sobre a roupa. Parece que aqui dois deuses se encontram. Tanatos e Eros. A morte e o sensual. O rapaz de uniforme branco é o sacerdote deste ritual.
A novilha ainda berra, inconformada. É isto, ela não pode se entregar como as demais. Não aceita seu inevitável destino.
Agora que estou sentado sobre o muro, ela, nos seus arroubos, olha fixamente minha barriga. Parece que já sabe que vai virar o bife nosso de cada dia. Que vai ser ralada na carne moída. Dependurada a carcaça no gancho do açougue, gotejando na cerâmica o sangue que agora quase explode as suas veias, movido por um coração desesperado.
Fico estudando aquela inconformada. Chego à conclusão de que o problema não é o andar da fila, a morte próxima e inevitável.
Parece que o olhar do bicho apenas diz que quer descansar um pouco, antes do momento final. Não quer morrer cansada. Quer ser digna do sacrifício que alimentará ainda mais o sobrepeso dos carnívoros e acabará um dia, na vingança de um infarto.
Mas ela precisa de tempo, necessita estar pronta quando a marreta descer implacável. Precisa estar consciente de si. Descanso. Só uns poucos minutos de descanso.
Precisamos dar isto a ela. Mas já não há tempo. A fila andou. Chegou a sua vez.
Todas aquelas vaquinhas,
ali dependuradas, quietinhas!
Dormindo um sono final,
com um rombo no frontal.
Desço e continuo margeando o muro. Não posso ver bem. A claridade cega minha curiosidade.
Mas sinto que eu também estou numa fila rumo à marreta, sem poder parar um instante pra descansar da vida e pensar nela com calma. Não há tempo.
A fila anda, vai acelerando e a marreta tem sede. Sede do meu sangue.
Áudio: trabalhos técnicos de Élson Ferreira da Silva; ambiência sonora com execução e arquivos de Marta Catunda.