ANJINHO DE ASAS MOLHADAS.

A sabedoria do povo simples vence a dor com poesia e encantamento.


ANJINHO DE ASAS MOLHADAS.

Estou num ermo desse Brasil, num desses brasis que o atraso da cidade grande não conhece.

Vou conversando com os populares do lugarejo, sempre meio dentro, meio fora das casas. Percebo que é muito comum falar das doenças, das mortes. Tocar nesses assuntos é conversa certa.

Mas ninguém fala de criança doente, de criança morta. Assim como não falam de doença de bichos; dos cães e dos bodes do lugar. Fico na impressão de que criança, cachorro e bode estão na mesma classe. Passo a semana com isso na cabeça.

Quando tomo assento na soleira da porta da dona Adalgisa, começo a entender.

Entalhe em madeira no confessionário, Catedral da Sé, São Paulo – SP.

Pergunto quantos filhos tem. Dezessete, me diz certeira. Eu estranho, pondero, acho muito. Pergunto por eles. Ela fala, com uma clareza estonteante de doze.

Eu nem estava ouvindo as histórias pessoais de cada um. Estava tão somente contabilizando os dezessete. Estava verificando se ela conseguia mesmo falar de todos, mas parou ao fechar a dúzia.

Dona Adalgisa, a senhora falou de doze. E os outros? Esqueceu? Aí ela retoma:

“Esqueci não. Os outros são anjinhos”.

Entendi que as mães fazem as contas com filhos e anjos. Mas na hora de contar as histórias, são só os filhos.

Fiquei ruminando aquilo. Dias depois fui falar com a parteira. A dona Ivanete explicou o resto. As mães não choram a morte das crianças. Aprenderam que lágrima de mãe pode molhar as asas do anjinho e então, com as asinhas molhadas, ele não consegue voar.

É a sabedoria cabocla que possibilita a sublimação da dor. Em meio a tanto sofrimento, só mesmo a poesia para permitir a continuidade da vida sem enlouquecer diante de coisas tão fortes como a morte de um rebento.

Agora entendo que crianças não estão na mesma classe dos cães e dos bodes. Estão noutra dimensão, no transcendente, na poesia, na classe dos sonhos.

Decido voltar lá na dona Adalgisa, dar um abraço bem forte nesta poeta do povo, nesta sábia mulher, uma guerreira. Prometo a ela que quando voltar para a ignorância da minha civilização vou contar a todos que é possível vencer a dor com poesia.

Eita povo evoluído, sô!

Áudio: trabalhos técnicos de Ricardo Lima – UEL FM.
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