ESCRITORES DE MENINOS.

O mais perigoso que existe é um escritor narrar a história de um menino.


ESCRITORES DE MENINOS.

Pense numa coisa perigosa. Não, nada de bombas. Tampouco uma invasão de alienígenas ou doença fatal.

Certamente a coisa mais perigosa que existe é quando um escritor narra a história de um menino, que pode ser ele mesmo. Portanto ele conta a própria vida, de quando pequeno. O que ele lembra e o que esqueceu. Isso recheado com todas as coisinhas que foi inventando no caminho daquelas frases.

Ou, quem sabe, seja a história de muitos meninos, com os quais o escritor foi trombando pela vida. Ou mesmo crianças que ele foi parindo na sua imaginação.

Mas pode ter certeza: tem uma porção de exemplos na literatura. Porém decidi que vou colocar aqui só os que eu mais gosto. E isso já é difícil de decidir! Mas vamos lá.

Em primeiro lugar vem o Miguilim. Este caboclinho que o Guimarães Rosa desenterrou lá de uma perdida fazenda dos cafundós de Minas Gerais.

O tal, cujo nome era Miguel e ele nem sabia, acreditava ser um miguilim mesmo. Mas ele coloca os óculos da visita e passa a ver o mundo todo colorido, resplandecente. As coisas crescem diante dele.

É uma metáfora maravilhosa para quando a gente vê as coisas pelos olhos dos outros.

Assim, quando acreditamos nas pessoas, valorizamos outras formas de ver o mesmo. Daí o mundo brilha.

O segundo menino está lá nas quebradas do sul do Peru. Atravessa a pé as cordilheiras, os rios e as matas. Gasta as chinelas pelos caminhos da região de Puno e Cusco.

Por fim o menino vai para o colégio interno. Mas não se encaixa nas expectativas dos padres. Acontece que ele já estudou demais pelos pequenos povoados do Peru profundo. Aprendeu sobre o mundo bebendo da sabedoria das pessoas humildes e esquecidas.

Então, no colégio não cabe tanto conhecimento, tanta magia, essa cordilheira de sonhos que existe dentro dele. Através da percepção desse menino, José María Arguedas nos mostra muito mais que isso no romance Rios Profundos.

Agora é atravessar o Oceano Atlântico e conhecer o pirralho que nos apresenta o Kadaré. Ele vive numa cidade onde nada muda, tal qual as pedras das casas. Lá um pequeno curioso assiste da sua janela o desdobrar dos acontecimentos do mundo e os respingos que sobram para a Albânia. É só abrir as página do Crônica na Pedra e o menino irá mostrar que a cidade dele não é feita só de um empilhado de rochas. Mas antes de um empilhado de humor e horror. E não é assim o mundo?

Só mais um, vai.

E agora que tal um garoto que está no meio de algo que nem ele sabe o que é? Seus olhos de menino que está crescendo vão entrevendo um mundo plástico e mutante ao seu redor.

É uma aparente suavidade que embala a violência de deixar o encanto e encarar o mundo do outro lado da ponte. Esta ponte que todos nós atravessamos lá atrás, rumo à juventude. É assim que o Belinaso nos emociona com o livro Do Tamanho do Mundo.

Ah, teria muito mais. Mas o que resta é responder porque é perigosa essa junção do escritor com o menino.

Bem simples. Só porque o escritor tem o maldito dom de tirar a casca das nossas feridas. Ou seja, de nos pôr a nu, mesmo falando de diferentes pessoas. Outros meninos, que são eles mesmos, que fomos nós e tudo o que poderíamos ter sido se alguém tivesse cuidado um cadinho mais de cada um desses meninos. Pois tivesse eu cuidado do menino que fui e seria um adulto melhor do que sou.

É nessa constatação que mora o maior perigo do mundo.

Não consigo dizer com segurança se escrever sobre meninos faz bem ao autor. Mas posso garantir que mexe com os leitores. O escritor nos desnuda a vida, os anseios, as alegrias e angustias do menino. Nós leitores, por nossa vez, vamos avaliando as possiblidades que já não temos.

Portanto, medimos atentamente aquele menino que já não somos.

Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – RÁDIO UEL.

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