A história de um tempo em que não temos histórias para contar, somente uma foto a postar.
UMA HISTÓRIA SEM FIM.
Papai, você sabe contar histórias? Pois é domingo, dia pra estar tranquilo e as filhas me vêm com este torpedo. Fico uns instantes em silêncio. As duas pimpolhas já sabem que ou estou pensando a resposta, ou que não vou responder. Assim, olham na expectativa, procurando decifrar em que caso se encaixa a situação de agora.
Por fim respondo que não, que os adultos não sabem mais contar histórias. Então elas se assustam.
Aí deixo claro que só sabemos as histórias decoradas, as que elas já conhecem e que poderiam contar melhor do que eu. Pois não sabemos mais histórias de verdade. Mas antigamente os adultos sabiam. Desde pirralhos ouviam as mesmas histórias, repetidas e repetidas, onde aprendiam valores, conhecimentos e assimilavam a cultura dos que contavam. Então o tempo transcorria lento, as atividades eram demoradas; uma coisa de cada vez.
Agora não dá mais. Pois tudo é tão ligeiro que não dá tempo de assimilar.
Ou seja, nem acabam de acontecer as coisas e já são do passado. Já vem outra coisa atropelando. Ainda estamos empacotando a novidade de agora há pouco e já começamos a dobrar outro acontecido, e outro e outro.
Então perguntei o que elas comeram no almoço. Uma olhou para a outra, pensaram e disseram que não sabiam. Depois foram resgatando os alimentos. Viram? A refeição nem digeriu ainda e já se perdeu na memória. É o instantâneo.
Antes contávamos um acontecido com muitas palavras, várias frases. Por vezes era mais demorado o relato do que o acontecer. Hoje narramos o evento com uma ou duas fotos postadas nas mídias e pronto. Sempre o momento mais lindo, o sorriso maior. Já foi. Está relatado o fato, está contada a história. E essa história não tem nada a ensinar. É só o relato de um instante. Não traz nada consigo que possa ajudar os outros a crescer, a conhecer.
Postamos uma foto na praia e nem mesmo citamos em que local do mundo está aquele litoral. Não interessa. É mais importante a marca da cerveja, do espumante, do que o lugar. Não tem geografia, não tem sociologia, não tem oceanografia. Só uma imagem para reforçar a todos que somos felizes. Pronto.
Mas, queridas crianças, falta uma coisa nessas histórias que não contamos hoje. Um pequeno detalhe que faz toda a diferença. Como não tem início, igualmente não tem fim. E aí falta aquele pedacinho: e viveram felizes para sempre. O para sempre não existe também. Somente o atropelo da próxima postagem logo abaixo.
Bom, pelo menos esta minha história, terá um final. Então aí vai:
E viveram ansiosos e frustrados para sempre. Posta aí, posta.
Áudio: Trabalhos técnicos e paisagem sonora de Elias Vergennes – RÁDIO UEL.