Mesmo que não tenhamos respeito pela vida, a morte ainda desfruta deste olhar atento.
UM AMONTOADO DE CARNES.
O povo está amontoado num canto da calçada.
Vou empurrando e chego até o centro das atenções: um corpo.
Reconheço o mendigo que está sempre sob a marquise. Acredito que morava ali. Agora não sei mais onde mora. É apenas um amontoado de carne exposta ao vexame de uma posição impossível, na calçada suja.
O boné do morto está ali, esparramado pelo chão, de boca para cima, com sede; ainda a pedir uns trocados de atenção. Penso que o boné do indigente cumpre essa função. Enquanto nos concentramos nele para atirar uma moeda, evitamos encarar a indigência, o despropósito de um ser humano em desumana condição.
Todos os curiosos estão acometidos por uma paralisia. Enjoado da imagem do homem desprovido de todo o sopro de vida, resolvo observar as pessoas. Vários estão com o boné, com o chapéu nas mãos. Também passo a mão pela cabeça, buscando algo que não tenho para ocupar a inutilidade das minhas mãos.
Inusitado isso de que as mesmas pessoas que antes ignoravam o indigente agora lhe tirem o chapéu em sinal de respeito. Pergunto se o morto merece mais respeito do que o vivo.
Mas não é pra ele a cortesia. Nem é o cadáver que todos estão a contemplar.
É a morte quem atrai tanta atenção. É o respeito a ela que leva os curiosos a tirar os bonés, a segurar os chapéus nas mãos.
O corpo ali exposto só tem a serventia de lembrar que a morte está presente, que estamos a um passo atrás dela.
Com este pensamento, me aproximo do finado e ouso tocar seu corpo, como se estivesse a constatar o óbvio: a vida já o deixou. Mas consigo perceber um movimento dentro dele. Acredito que sejam as bactérias, os vermes, as larvas que estão reclamando o que lhes pertence. Estes seres estão colocando-se a trabalhar, a se reproduzir, a viver. De certo modo, é uma forma de vencer a morte.