SUSSURROS DO PÓ.

radio antigo azul

“Ame o que quer que flua. Fumaça da cozinha, sangue de mulher, lágrimas. Você ouve o que estou dizendo?”


SUSSURROS DO PÓ

Pelo menos uma coisa eu aprendi torto: aprendi a amar errado.

Não que eu não devesse ter aprendido amar. Não é isso. Só que eu aprendi a amar de um jeito equivocado.

Foi no que deu ouvir os outros e acreditar que estava tudo certo, já consagrado.

Afinal, aprendi amar coisas sólidas, estáticas, firmes; amar pessoas.

Pois não deveríamos amar os pais, a esposa, os filhos, os gatos, cachorros, seja o que for. Não amar nossa profissão. Muito menos isso de amar o próximo.

Então, não amar coisas concretas; pessoas muito fixas; seguras demais.

Foto de escultura em tronco seco de árvore, Morro de São Paulo, Bahia.
Foto de escultura em tronco de árvore. Morro de São Paulo, Bahia.

Mas o que eu deveria amar? É isto que você está perguntando aí com esse olhar inquisidor, não é mesmo?

Eu explico, já que não desejo me complicar com a sua digníssima pessoa.

Pois o que eu deveria ter aprendido amar é o sorriso da minha esposa. Suas lágrimas de alegria ou de tristeza. Seus medos, suas conquistas. Devo amar suas inseguranças.

Então deveria ter aprendido amar o abanar da cauda do cão. Não a ele, esse ser peludo e saltitante.

Portanto, imagino que seria mais digno do meu amor, a balburdia dos meus filhos na tarde de sábado. O arregalar dos pequenos olhos a cada descoberta. Devo venerar o sangue que escorre do joelho ferido na queda da desequilibrada bicicleta.

O objeto do meu amor deveria ter sido o cheiro do milho verde a cozer na panela de ferro da mamãe. O calor da sua mão no alto da minha cabeça. Bem como o cheiro da colônia pós barba do meu velho, a flutuar na manhã azul, chocando-se com o odor do café recém coado.

Assim também, deveria ter amado os balbucios de cada um.

Acredito mesmo que eu teria sido mais justo com todos eles e mais honesto comigo mesmo se amasse essas evanescências. Tais despercebidas sutilezas.

Amar, acima de todas as coisas, os sussurros do pó ao movimento de cada ente querido.

RELOJOEIRO DA VISTA RUIM

poema de C.D. Wright

Fecho a loja às seis. Celebro o vento,
fim de semana com dois sóis, noite com livro de viagem,
os lençóis com dobras de uma cama
que não voltarei a ver.
 
Não tenho tempo, me perco no tempo
aprendido com os relógios  —
um segundo é coisa que mata.
 
Viva sua vida. Seus olhos vão. Leve seu corpo
a caminhadas junto às águas
de um louco e frio planeta.
 
Ame o que quer que flua. Fumaça da cozinha, sangue de mulher,
lágrimas. Você ouve o que estou dizendo?
Tradução de André Caramuru Aubert, Jornal Rascunho (https://rascunho.com.br/), maio 2023, p. 40.

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Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – Rádio UEL

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