É possível a ideia de que a finitude possa ser um aglomerado de boas coisas, ao invés de ser o fim de nossas vidas?
UM MÍNIMO DE DONA LAZINHA.
O Guimarães chamou pra visitar uma tiazinha dele, pra lá de velhinha, muito doente e ele não queria ir sozinho. Medo da morte que estava rondando a dona Lazinha. Fomos.
No fundo da casa um quartinho. Parecia que o teto havia se rebaixado, as paredes, encolhido. Até a luz estava respeitosa. Entrava e não entrava pela janela. Lá na cama, como que uma cobertinha amontoada, era dona Lazinha. Paradinha, olhos pro céu, esperando a porta abrir.
Fui chegando mais perto. Aí percebi que parecia parada, mas se movimentava. Só que muito devagar, lento, lentinho. Estava tão encolhida que nem o pensamento já não cabia dentro da cabecinha dela.
Será que vamos envelhecendo e ficando sem tempo e espaço neste mundo? Aí encolhemos. E os nossos movimentos que antes eram ágeis, generosos, agora tornam-se contidos, quase inexistentes. Assim vamos negociando um pouco de tempo e espaço, economizando a vida. Procurando não incomodar.
Colocamos dona Lazinha numa cadeira e carregamos para fora, enrolada na manta. Quando sugeri de irmos lá fora, pensei que ela precisava dar adeus ao mundo, ao seu mundinho.
No quintal, a luz parece que a reconheceu. Inundou suas faces. Os fiapos brancos de cabelo fininho conversavam com o ventinho do começo de tarde. Mas tinha os olhos. Ah, os olhos ainda brilhavam como os de uma menina. Ela ia mexendo devagarinho. Mirou o olhar no tronco da mangueira e foi subindo, como fazia antes. Trepou na mangueira com os olhos. Ela estava bebendo muitas experiências esquecidas. Conhecendo muitos conhecidos daquele mundo protegido pelo muro da casa. Aí percebi que não era morte que ela carregava.
Falei baixinho no ouvido do Guimarães. O que tem dentro dela, da dona Lazinha, é muita vida. Quase não cabe dentro do corpo encolhido, vai vazando pelos olhos. Ali dentro daqueles olhos, tem festa, tem pescaria, tem cachoeira. Naquele corpinho tem muito cheiro de comida boa, canção de meninas alegres. Dentro daquela cabecinha enrugada tem muitas cidades, muitos sabores, muitos amores.
Eu fui lá pensando que dona Lazinha estava morrendo e descobri que ela é uma bomba cheia de vida, esperando pra explodir.
Será que a morte não é isso? A vida que já não cabe no corpo da gente? Na despedida, fixei os olhinhos dela, e eu estava cheio de alegria, de vida, emocionado, só consegui dizer: Tomo a sua benção tia Lazinha!
Áudio: Trabalhos técnicos de Élson Ferreira da Silva – UEL FM.