A FOICE AFIADA

Queremos dar sentido à morte, definir a idade justa para se morrer, mas a velha senhora não conversa, passa a foice.


Durante o mês de novembro a coluna O Cotidiano apresenta uma série de narrativas sobre a finitude humana. Acompanhe!
Capela e cemitério São Rafael, Rolândia, PR.

A noite vai avançando e o velório virando aquilo de sempre. Acho que até o finado se cansa da posição. Costume besta de ficar a noite toda ali se martirizando, tomando café horrível e mascando um pão já quase seco, de sei lá quando.

Meu amigo brinca que, se você quer comer pão de hoje no velório, é só vir no velório do defunto de amanhã. Palhaçada, piadinha de falta do que fazer.

Eu olhava pela janela e via meu carro lá fora. Doidinho para ir lá, enfiar o banco para trás e dar uma relaxada, puxar uma palha, como diziam na roça. A patroa estava animada, conversando com os parentes dela. Aí prestei atenção nas duas tias que queriam que o menino fosse dormir. Ele negava, com os olhos verdes menores que uma ervilha.

O garoto foi lá tomar um café. Encheu de açúcar e ficou olhando o vazio, o copo parado na mão. Uma das tias falava para a outra que o tadinho é muito jovem, não entende a morte.

O senhor que estava ao meu lado, repartindo meu nada a fazer, assuntando a conversa das duas, virou e falou baixo, “eu tenho quase setenta e não entendi o que é isso de morte até agora. Imagina o menino”.

Aí engatou prosa, diz que foi num velório de criança e tinha gente reclamando que o menino era muito jovem para morrer, já agora estão falando que esse pirralho é muito jovem para entender a morte.

Emendou, “morte não vê idade, não quer saber de entendimentos, não. Acho que nem conversa, que não está interessada no que pensamos ou achamos ou deixamos de entender. Vai passando a foice e carregando as almas num saco ensebado. Os caras acham que o quê, tem idade para morrer? Olha, basta a gente nascer e já se é velho suficiente para morrer. Agora, anote aí, a morte não tem piedade, porque é uma velha azeda, que não se conforma, vou explicar.

Afinal, se eu existo, a morte não existe para mim e se a morte existe para mim, aí eu é que já não existo mais. A morte não aguenta esse desencontro conosco. Por isso vem de foice e saco nas costas, sem conversas”.

Cara, fui tomar outro cafezinho frio.

Áudio: trabalhos técnicos de Élson Ferreira da Silva – UEL FM.

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