A PERNAMBUCANA QUE MANDOU O CHICO LER.

E a Ana Maria, enfiou nas caraminholas de querer um particular com o Chico. Que Chico, Ana Maria? O Francisco, ué! Ah, entendi, ela quer falar com o Papa! As dezenas de velinhas apagadas ano a ano, lhe permitem essa vontade, mas bem parece um capricho de adolescente. É coisa da menina que vive dentro dos olhinhos cor de mel de Ana Maria. A origem nordestina bole dentro dela. Nada é impossível para esse povo que nunca desiste, resiste a tudo e sempre sai vencedor. Começa a mover uns pauzinhos aqui, uns galhos ali, uns troncos acolá, uma floresta toda, se necessário se fizer. Mas já vai avisando, quer uma audiência privada. Nada de multidão acenando bandeirolas e o Papa passando no ensaio de uma benção, com a destreza da destra mão pontifícia. Quer conversa de pé de orelha na varanda. Tá, que não seja na varanda então, já que a Cúria Vaticana não descobriu essa virtuosíssima delícia sertaneja. Que seja numa salinha enfeitada deles, vá lá. Mexe, cutuca, aperta, afrouxa, até que recebe a notícia da audiência. Privada, claro. Se coloca nos panos, embarca num avião e se apresenta, ladeada pela pomposa guarda suíça. O marmelengo atende a Ana Maria com toda a pressa desse povo de antecâmara de sumidades, especialistas em conferir mais relevância ainda a gente já importante. Informa que Sua Santidade, o Papa Francisco (Ah, o Chico, Ana Maria.) irá dispor de 15 minutos para atendê-la. Quinze minutos? Oxê, isso lá é conversa? Bom, que seja, afinal é o Papa e desse calibre só tem um. Com sorriso no rosto e nos olhinhos sertanejos ela entra na câmara da audiência, acompanhada. Junto vem uma lembrança para o Papa. Tudo bem que ela e a filha passaram dias correndo atrás do papel mais lindo para o embrulho. Tudo bem que fizeram o laço mais vistoso do mundo e a segurança vaticana pôs tudo por terra. Oras, o que poderia vir de perigoso do Brasil? Mas existe uma hora de calar e obedecer. Agora o caixote vai sem os adereços, a não ser uma eloquente plaquinha entalhada na madeira onde se lê: Feito para Francisco, pelo carpinteiro José. Ufa, Francisco está respeitoso, para Chico, seria abusatório. Ana Maria, ali naquele momento se transforma. Vira a Nita, a severa e doce viúva do educador Paulo Freire. Imagino que vá dizer ao Papa que Paulo deva ser canonizado. É, boa ideia. Para isso são necessários tão somente três milagres e dá para encher um navio de gente que pode atestar o milagre que receberam da bondade de Paulo. A graça de despir-se da ignorância através do conhecimento daquelas dezenas de letras, que bem organizadinhas viram pensamentos, contam histórias, ganham vida, fazem pensar. Mas não, nem é isso que a Nita quer dizer ao Papa, que assunto de santidades é especialidade lá deles mesmo. E o que dá para fazer em quinze minutos? Uma nordestina astuta faz virar quarenta minutos, apesar da sudorese do assistente do Papa, nervoso com a fila que se forma na agenda e na antecâmara. Conversam que conversam e ela resolve que Nita e Francisco vão sair do Vaticano e comer uma pizza. O assistente dá um pulo. Calma Ana Maria, não é para tanto. O Francisco, diplomático, sugere que o Papa venha ao Brasil e pede que ela faça uma feijoada. Uma feijoada brasileira para argentino nenhum colocar defeito. Ele demonstra familiaridade com essa culinária e lembra do paio, da costelinha defumada, da parafernália toda. Fica combinado, justo e acertado. Ana Maria vai saindo carregando nos braços, na alma, a pontifícia benção papal. Nisso Francisco, quase o Chico, a chama e cantarola “você pensa que cachaça é água” e a Nita, já saindo completa “cachaça não é água, não”. Pronto, tá organizado o repertorio para o dia da feijoada.

Ah sim, o conteúdo do caixote, não vamos esquecer de falar do presente. O que se pode colocar num caixote que vai ser entregue ao Papa? A mensagem do artesão que o confeccionou, por certo. Mas também cabe no caixote tudo o que o Paulo tinha a dizer ao Papa, ao Francisco, ao Chico e a todos os povos desses sertões do mundo. Aninhados no envoltório de madeira, estão, lá nas vísceras do Vaticano, um exemplar de cada livro que Paulo e que Ana Maria escreveram. É um pedido para que o Francisco leia isso tudo e convença o Papa de que Sua Santidade, nesse conturbado mundo atual, nessas circunstâncias de hoje, é a única liderança que pode iniciar uma santa e sábia cruzada em defesa do apóstolo do alfabeto. É a oportunidade dada ao Papa de unir sua autoridade a milhares de pessoas simples, de professores, de estudiosos, catedráticos de universidades, nesse deslumbramento intelectual, revestido de tanta simplicidade, de toda a simplicidade que emanava de Paulo, que emana de Nita. As catedrais dessa sabedoria já estão edificadas dentro de cada um, mas também nos prédios que homenageiam Paulo Freire em vários locais da Terra. Foi só isso que Ana Maria foi fazer lá no Vaticano, mandar o Francisco ler o que vale a pena ser lido. Uma leitura sublime e, portanto, profunda, mas embalada na singeleza, na mais pura simplicidade. Ah, foi esse o perigo que a segurança encontrou envolta no papel de presente e no tão esmerado laço de fita, essas ideias capazes de uma revolução. Boa leitura Sua Santidade!          

Marcos Reigota, Nita Freire e Nilson Giraldi. São Paulo, setembro/19

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