O ASSASSINATO.

No obscuro desta idade média em que vivemos, a ignorância costuma ser a arma que mais mata. Um dia virá o século XXI.


Deus é quem me protege! Glória a Deus! Essa é a prevenção que a Martinha apregoa para toda e qualquer doença. Está convencida de que os escolhidos, ou seja, os da igreja dela, não sucumbem ao mal. Com essa convicção, anda pela cidade toda, despreocupada, imunizada pelo divino. Mas a Martinha acordou com uns sintomas respiratórios. Foi pro médico. Deus garante, mas por via das dúvidas … sei lá o que ela pensou. Sentada na espera, enfiou os dedos na máscara, baixou para altura do queixo e já foi reclamando que a máscara dá coceira no nariz, que aquilo é besteira e entrou no Glória a Deus, amarrando um assunto com o rapaz que só assentia com a cabeça.

O médico chama a Martinha. Ela deu dois passos, chegou no vizinho e estendeu as unhas pro lado dele. Apertou bem a mão e invocou as bênçãos do Senhor. Recolocou a máscara e marchou rumo ao consultório.

O rapaz pegou um copo d’água, e foi pro sanitário, buscando controlar a ansiedade semanal de receber a medicação para a leucemia. A falta de chuvas e essa brisa contínua que leva a umidade embora se mostrou pro rapaz numa casquinha incomodando na narina direita. A intimidade do sanitário e a unha trouxeram a danadinha para fora. Junto veio sangue. É o nível baixo das plaquetas.

 Ele não consegue se decidir se levanta a cabeça pro sangue não sair ou se abaixa e tapa a narina. Na dúvida, nivela os olhos perpedincular ao espelho e fica mirando a si próprio. Por mais próximo que esteja do espelho, não consegue ver na mão direita o calor do aperto de mão da Martinha, nem o punhadinho de vírus que vieram com o Deus abençoe. A maioria deles já foi pra narina.

Na semana seguinte a medicação da leucemia é substituída pela rotina da UTI, os pulmões seriamente comprometidos. No feriado da quinta feira, uma pequena procissão deixa o moço no desconfortável aconchego do cemitério da cidade e acrescenta mais uma cruzinha na estatística da epidemia.

Quem? Ah, você quer saber da Martinha? Essa foi pro isolamento domiciliar com uma receitinha, certa de que nada aconteceu com ela graças à proteção divina. Passou duas semanas com as pernas longe da rua e os olhos passeando pelo livro sagrado, sem se saber autora de um homicídio, cuja arma não foi o vírus, o vírus foi só a munição disparada pela arma da ignorância.

Áudio: trabalhos técnicos de Elias Vergenes, UEL FM.

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