Em homenagem a José Praxedes dos Santos, de Exú, Pernambuco, o sempre vaqueiro do Rei do Baião, Luiz Gonzaga (1912-1989).
Tocando rota nos costados da serra do Araripe, os piolhos da onça sertaneja passeiam nas minhas ideias. Topo com o vaqueiro a ruminar na entrada do abrigo, porteira do seu lar. Não conduz mais gado. Vai aboiando as lembranças pro curral da memória, montado no baloiço da cadeira, coxo pela chicungunha, embuçado na máscara negra. Receia o Covid.
Zé Praxedes, como que atirando o laço nas guampas da rês fugidia, estende o braço, apresenta sua casa, sinal de aprisco aberto. Isso tudo foi ele que me deu, eu só fiz o muro, diz em referência ao Seu Lua, de quem foi vaqueiro de estima. Transparece orgulho nos seus olhos desvanecidos atrás dos anos que, por baixo do tecido negro, lhe tapam a cara. Touro bravio, agora é boi de curral. Praxedes tangia o gado tal qual o patrão harpejava a sanfona, fazendo eco nas encostas da serra. O Araripe tudinho acompanhando no sapatear o solo rude. Quem não conheceu Seu Lua? Nesse Exú mesmo, nesse Pernambuco, nesse sertão que é o mundo. Terras todas onde é só ter uma sanfona chorando que cabra macho derrama lágrima goela adentro, que é para não afrouxar na frente dos outros.
Exú, lá nos mil e setecentos, o lugar já começou em guerra, arrodeado pelas fortalezas rupestres da serra. Primeiro foi atochar o gado e desapropriar os Cariri, indiada Ençu, família deles. De onde veio o nome do lugar, Exú. Chegaram os jesuítas ostentando cruz. Outra guerra, instalar o Cristo em cada aroeira, em cada braúna, em cada barriguda, nos angicos. Dá-lhe o povo assentando os joelhos no pó do mundo. O lugar mudou para Senhor Bom Jesus dos Aflitos de Exú. Depois o bicho suplantou tudo e começou a sua guerra. O bípede, o homem. Suas famílias se matando. Sede de poder, fome de pastos. Revanche alimentando vingança e parindo desforra. Quem acabou com a briga de quase século foi o Seu Lua. O acordeão descansado no banquinho, o Luiz serenou a região, apaziguou as famílias. O Riacho da Brígida cessou de receber coágulos de sangue dos seus rebentos. A Asa Branca sobrevoa, galhinho no bico enquanto os dedos expeditos de Gonzagão retornaram para a sua função, na barriga da sanfona. O baião levanta a poeira e o suor sertanejo inunda o sertão. É o mar, agora só Exú, novamente.
Atual, o patrão Luiz Gonzaga, Seu Lua, o Gonzagão, não está aí disponível para apaziguar contenda. É a última que Seu José Praxedes de Souza vai testemunhar? As esperanças rompem a cerca e ganham as distâncias. Seu Zé, cadê cavalo ligeiro capaz de caçar essas fujonas e fustigar as bichinhas para o cercado do coração? As bulicas negras por trás da máscara não denunciam crédito. Perdem-se na imensidão de um piscar desesperançado. A visão fraca, a confiança pouca já impede de mastigar solução. A luta agora, moço, não é de boi pisoteando índio. Não é de sobrenomes se enfrentando na ponta do punhal. É de boizinhos invisíveis, insetinhos impalpáveis, gadinho intangível, microbinhos cercando gente. Uns deixam aleijados, corpo fervido, olhos vermelhos, outro sem ar. Imagine, sem ar nessa imensidão! Ficam só tocaiando. Diabinhos tangendo gente pro campo santo.
Preciso dar um ar, uma distância, um espaço, um tempo, dar respeito. Dou um afasto. O passante pergunta numa cusparada, o que esse véio mentiroso tá falando aí? Ah, ele não está tapeando ninguém. Contando as coisas como recorda. Agora um tantinho diferente das que lembrou ontem, porque hoje ele é diverso. Uma lua a mais na capanga, um punhado a menos de horas para contar o que só é verdade porque é o que está bulindo nas entranhas dele, exposto a ponta de punhal. É a gota que transpira na sua melanina dele, quase igual ao que aconteceu com outras boiadas de horas que não são as de hoje. São outros mugidos, mas são bovinos ou humanos bramidos de desespero, que nesses tempos, só podem ser apaziguados pelo som da Asa Branca: Seu José, guarda contigo meu coração.
