UM CERTO CAPITÃO.

A relação doméstica e social, com seus desajustes, sugere a violência contra si próprio e contra outros como forma de harmonizar os conflitos, sem contudo chegar a qualquer solução.


UM CERTO CAPITÃO.

O nome dele mesmo eu nunca pude saber. A graça do batismo, como se diz. Só o conheci por capitão. Isto me intrigava. Capitão do quê, de quem, de onde? Milico ou meganha de polícia é que nunca foi. Nem pude descobrir que tivesse jogado futebol em algum lugar. Que raio de capitão era aquele homem?

Só se fosse o capitão do desfile que ele solitário fazia toda vez que reunia umas moedas e aspirava o espírito da cana na ponta do balcão sebento daquele bar escuro.

Lá pelas oito e meia da noite ele descia a rua esburacada. Marchava pelo meio, no zigue-zague do vai-e-vem. Eu ficava acompanhando de dentro das calças curtas que me cabiam.

O capitão chegava naquilo que devia ser o seu doce lar, forçava a porta até a tramela ceder. A família toda já ia saíndo como podia. Os quatro filhos e a sogra. Que a esposa mesmo, esta ficava na cozinha em pé gesticulando as palavras que eu não podia ouvir de onde estava.

Aí ele cansava da ladainha, com a cabeça cheia e o saco de paciência já pendurado no batente da porta forçada. Ia resmungando baixo até o quarto e voltava com a mão cheia. Fazia a velha arma de cano curto cantar na cozinha, cuspindo bala no vidro do fogão a gás. Sempre no vidro do fogão.

Enquanto a arma entoava sua melodia curta, a esposa emudecia assustada, o pescoço enfiado no meio dos ombros e as mãos nas orelhas.

O velho capitão cuspia no chão. Com o escarro saia um ou dois palavrões. Ia dormir tranqüilo, defendida sua macheza, tentando comandar seu exército de neurônios encharcados na cachaça, para que a cama parasse de rodar.

Os vizinhos saiam da janela. Tudo voltava ao silêncio. Só o cachorro besta do fim da rua ainda latia a interrogação do sucedido.

No dia seguinte o capitão arreava a mula, punha o finado fogão em cima da carroça e ia para o centro consertar o vidro. Pelo meio da manhã o fogão já estava estalando com um vidro recuperado de outro fogão mais velho ainda.

Até hoje me pergunto se era o estilhaçar dos cacos ou preço acessível do vidro no ferro velho que levava o capitão a disparar contra o fogão.

Ou ele pensava que a alma da esposa estava lá dentro daquele fogão, como a dele estava na garrafa da caninha?

Áudio: trabalhos técnicos de Élson Ferreira da Silva – UEL FM.

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