UMA MARIA REZADEIRA.

Nesses “brasil” todos, sempre se pode encontrar alguém que parece fora do lugar, mas que está é bem nos seu lugar mesmo. É o caso da Maria, pintora e rezadeira.


O lugar é lugar algum, nenhum.

Nem cidade, só um aglomerado de casas. Pega reto na igreja e segue coisa de duas quadras e você vai se assustar.

A esquina é ocupada por uma centenária casa de madeira, os pés das tábuas de peroba já apodrecendo; pintura, já era; a cumeeira anunciando a queda do telhado. Casa toda torta, mas as paredes externas têm algo inusitado. São uma galeria a céu aberto.

A galeria da Maria, nas paredes de peroba.

Não consigo seguir sem conferir essa doideira. Deixo a moto por ali e vou apreciar as pinturas, caminhando quase ao meio da rua para ter espaço de ver. Muitas flores, cores fortes, traços quase infantis, mas que guardam uma proporção, uma simetria … uma energia madura.

Bato palmas no portãozinho cai-não-cai.

A Maria vem atender. Assim, Maria, só Maria, Maria só.

Vou falando, especulando e admirando outra obra de arte, uma instalação, o jardim aos fundos da casa. As narinas, meus ouvidos, olhos, enchem-se de lembranças da infância. Quase vejo minha mãe ali, abrindo antigas latas de tinta para se transformarem em vasos. O terreiro.

A Maria me tira do transe e convida para entrar. Aí entendo que é casa só por fora, abraçada pela velha peroba. Por dentro é uma espécie de templo, de oca, … é um castelo. A porta é baixa, pequena. Preciso reclinar-me em reverência para poder entrar. Ali vive princesa!

A porta dá acesso a uma cozinha, com todos os alumínios pendendo da parede, quase espelhos de tão tratados. Um átrio de igreja, com suas sacrossantas jóias pelas paredes. A sala está repleta de quadros, com as janelas fechadas e um bico de luz quase iluminando este santuário de arte. As paredes do banheiro, decoradas com pinturas. Nem a tampa do vaso sanitário escapa de ser uma superfície sacrificada em nome da arte da Maria, das artes da Maria.

Ela conta que começou a pintar de uma hora para outra, quando a mãe faleceu os seus 104 anos. Maria foi atrás de umas tintas e conseguiu uns restos de aglomerado de madeira e velhas placas de sinalização. Saiu pintando.

Maria e as flores de Maria.
Percebo que nem é ela quem pinta nada. São as formas e as cores que saem dela, vazando através das mãos ágeis.

Pergunto quanto tempo demorou para pintar o quadro grande com uma cachoeira em meio ao matagal. A resposta sai num muxoxo, uns vinte minutos. Vinte minutos!

Pergunto se está pintando muito. A verdade é que não está. Há tempos que não pinta. Não tem tintas. Está esperando ganhar ou conseguir alguma para poder extravasar o que vai por dentro. Tem pessoas que gostam das suas pinturas e trazem tintas, às vezes, ao acaso.

Entro num quartinho. Só uma cama. Os pelos dos meus braços eriçados. Ela conta que ali é onde reza, onde dorme ou chora. Só pinta ali naquele … altar? Saio rápido dali. É muita energia e estou de estomago vazio: perigoso.

Agora, ambientado à muita luz e à pouca iluminação, observo que a casa sem forro, tem pinturas pelas tesouras, pelos caibros, pelas vigas. Lembro do teto das capelas italianas, mas Maria não vai saber disso não.

Resolvo sair e ir olhar o quintal, respirar o terreiro.

Pergunto quanto quer pela tela que trago nas mãos, para observar melhor à claridade exterior. Fiquei cativado pelas flores que Maria pintou, tão cruas, tão gritantes.

Ela diz para “dar” quanto achar que vale. Não é para venda, é uma troca, algo assim.

É, Não se vende arte.

Tiro umas notas do bolso, entrego e pergunto se está justo. Ela chora, ela não, só os olhos. depois o nariz escorre e aí ela se atrapalha. Fico calado, esperando tudo acalmar para entender alguma patavina.

Por fim Maria explica que esse dinheiro ela pediu ontem nas orações. Há meses que não vê a netinha. Com esse recurso vai pagar o ônibus para a nora trazê-la e deixar uns dias, aproveitando as férias.

Descubro que não foi choro, eram úmidas saudades, saindo pelo canto do olho. Depois que perdeu a mãe e os filhos cresceram, a netinha é quem enche o seu coração.

Sem saber o que dizer diante de tanta emoção, pergunto se ela se sente só. Responde que muita gente passa por aqui. Fico pensando se estamos falando de gente de carne e osso.

Aproveito para resolver minha curiosidade, comento que casa de benzedeira é que tem esse afluxo todo. Ela entende, reage mansa, é evangélica e isso de benzedeira é coisa de bruxaria.

Sua fala não convence nem a mim nem a ela. Já entendo que é uma convertida recente e que o resto todo ainda está nela. Seu olhar fica ausente, perde-se no vazio.

Destrambelha a falar, mas não pisca, nem uma única vez, olhar fixo. Do olho esquerdo verte uma lágrima atrevida, que fica passeando pelo rendilhado que a cada dia a vida foi esculpindo em Maria.

Conta que é rezadeira, isso sim. Eu fico com dó dessas conversões evangélicas. Um desperdício. As benzedeiras eram mais interessantes que o repetido “pelo sangue de Jesus”. Mas, afinal, rezadeira ou benzedeira, dá na mesma.

Ela conta que pessoas “aperreadas” vêm pedir oração.

Dias desse mesmo, rezou por uma vaca que, encontrada caída, já não tinha solução. O proprietário preocupado com o leite de cada dia dos filhos pequenos. Maria orou forte e mandou irem lá ao local, colocar água no balde e levar até embaixo da jabuticabeira, que quando chegassem com a vasilha, a vaca iria mugir e levantar.

O dito foi o acontecido, bem assim, só assim.

Na minha cabeça misturou São Francisco de Assis, a benzedeira e a rezadeira, Irôko, até Oxum. Muito nome para mesma coisa. Se isso não for bruxaria, é o quê? É divino?

Maria leu meu pensamento, seu olhar retornou para o planeta Terra, sorriu com os dentes que já não possui e quis mostrar as mudas de antúrio, ou antulê, como diz. Jeitinho dela de mudar de assunto, né?

Resolvi que já era hora de andar, de movimentar a poeira quieta na estrada. Só abaixei a cabeça, suplicando que reze por mim.

É tudo o que posso pedir, pois nem sei para quem ela dobra os joelhos. Isso só ela sabe, mas não fala, embora seu olhar até o diga.

Vá lá um dia. Em Marília, estado de São Paulo, em Nóbrega, perto da igreja, da escola, perto de tudo, lá na Maria que é rezadeira e pintora, artista deste e do outro mundo. Não tem como se perder, ela vai estar lá.  

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