UM SEM ROSTO, OU UM SEM NOME.

Quantas maldades já não praticamos e nem pensamos mais nelas. Perderam os nomes, perderam os rostos.


UM SEM ROSTO, OU UM SEM NOME.

Uma noite fria e úmida. Entrei num bar e me ofereceram um copo de vinho, dos de colônia, como dizem naqueles perdidos do Oeste de Santa Catarina. Aceitei.

O cara ao lado era um sujeito singular. Conseguia olhar para mim, embora seus olhos não se desviassem do copo depositado sobre o balcão do bar. Aquela prancha de araucária, com seus nós característicos. Uma maravilha de tábua grossa de uns oito ou dez metros. Esses sabores antigos.

Dois copos de vinho e eu estava a conversar com o vizinho. Ele sempre sorumbático, olhar pro copo. Arranquei dele a profissão: coveiro.

Mas o vivente tinha um sotaque totalmente diferente da população local. No quarto copo soltou que é mineiro.

Para muitos, dias antes, enviava uma coroa de flores com um convite para a missa de corpo presente.
Veio fugindo da profissão anterior: pistoleiro.

Diz que cansou de despachar gente. Nem sabe quantos. Afirma que os condenados não têm número, nem nome. Só uma foto e um endereço. É o que basta. De nada adianta ao que vai morrer ter ou não ter um nome. Seu nome já é finado.

 Explica que pistoleiro é uma espécie de carrasco. Não interessa os pecados do condenado. É executar o serviço com exatidão, evitar sofrimentos pro cabra. E evitar confusões pro seu lado.

Ele não sabia o que fazer em Santa Catarina. Até que um cara que simpatizou com ele perguntou que coisas sabia fazer, de que ramo entendia. Saber mesmo sabia de mortes. E foi parar na atividade de coveiro, que tem a ver com morte, também.

Em alguns momentos acredita que ser coveiro é um castigo para ele. Agora precisa dar destino aos corpos, enquanto tantos e tantos corpos foram por ele desovados em rios, em buracos, em lixões. No atual precisa dar um destino digno aos defuntos, com todos os rituais.

Os do enterro, estes não têm rosto. Somente mais tarde ganharão uma foto no tumulo revestido de granitos e mármores. Mas desde já tem um nome, escrito com o pincel duro e a tinta azul, sobre a carneira que abriga o caixão.

Nem sabe quantos matou, assim como desconhece quantos enterrou.

Diz que uma coisa que não consegue nessa nova profissão é carregar, colocar as mãos em coroas de flores.

Na época de matador de aluguel, tinha este prazer, este gostinho. Para muitos, dias antes, enviava uma coroa de flores com um convite para a missa de corpo presente, pra breve. Isso chegou a fazer fama na região onde atuava. Faziam piadas com a história das coroas e da missa de corpo presente.

Agora, sempre que coloca os olhos numa coroa de flores, sente o gostinho na garganta. A saudade da adrenalina, o frio do gatilho na ponta do indicador.

Eu, ou o vinho que ingeri, digo que não teria coragem de matar ou de enterrar alguém.

É só o primeiro, depois vira rotina, diz ele. Igual quando maltratamos alguém, quando excluímos um qualquer. O princípio é o mesmo, me garante.

E eu fico a pensar, quantas maldades dessas já não praticamos e nem pensamos mais nelas. Perderam os nomes, perderam os rostos. Só mesmo as flores, só mesmo a beleza para nos inquietar.

Vai saber quantas pessoas já destruímos, vai saber.

Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – UEL FM.

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