SEDE DE IGNORÂNCIAS.

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Um velho não pode se dar ao requinte e ao prazer da ignorância. No instante final, será o desejo de inocência a fechar-nos os olhos.


SEDE DE IGNORÂNCIAS

Pois se tem uma coisa triste é ir visitar parente doente. Pra piorar, doente e velho.

Sem opção, venho cumprir o mandato da minha mãe. Vou tratar ele por o Velho, pois percebi que é esse o rótulo que recebeu de todos os que estão varejando em volta dele.

Mas isso não quer dizer que estão próximos. Afinal, o objetivo geral de todos eles é uma casquinha da herança. É fantástico como cada um já tem definido o que vai fazer com a parte que espera lhe caber. Mas o Velho teima em não partir. Continua aqui, empatando os planos dos parentes.

Como não sou parte dessa herança e preciso ficar por aqui três dias, decido estudar o Velho. Decifrar esse cara que todos empurram, mas que não se move, rumo ao sepultamento que lhe cabe.

A primeira coisa que observo é que talvez o velho já esteja enterrado. É, é isso mesmo. Ele já está numa sepultura temporária. Um dia ele irá pra morada definitiva, para alegria geral. Mas sepultado já está. É isso que representam esses cômodos empoeirados onde ele vive e eu me hospedo. Um mausoléu em plena avenida.

E então, o que o velho está fazendo aqui? Pois vou resumir pra você. Ele está tão somente punindo-se. Seus olhos ficam vagando na penumbra enquanto os dedos vão contabilizando seus poucos ou muitos pecados. Quem sabe quantos ou quais?

Por fim eu crio essa ideia, a de que ele, ciente dos seus mal feitos, aceita e estimula qualquer forma de punição. Seja a visita dos abutres que rondam suas viscerais economias e bens; seja essa música irritante das motos sendo aceleradas na oficina em frente; ou as dores que lhe percorrem o corpo, avisando da proximidade do fim; seja a solidão das noites insones.

Agora, no terceiro dia, mesmo a mim que estou só de passagem, até o ruído das chinelas da empregada da casa, lustrando a madeira do assoalho, é uma fonte de incômodo diário. Mas acredito mesmo que a maior das punições, ou das esperanças, seja o som do relógio na parede. Vai cadenciando a passagem do tempo, em sintonia com a campainha ou com o grito do telefone acionado pelos vendedores de tudo quanto é tipo de remédio, de seguro, ou de planos inúteis.

Cada incômodo desses é um cravo a ser martelado na alma do Velho. Ele suporta cada pancada, ciente do seu merecimento.

Penso que o Velho padece quieto, mas feliz.

Afinal um velho não pode se dar ao luxo e ao prazer da ignorância.

Imagino que seu último desejo seja poder se arrastar até a janela do andar superior e mirar o mundo com os olhos da criança que não é mais, há muitas décadas.

Ah, se ele pudesse degustar o mundo com as retinas ignorantes e maravilhadas da infância.

Na hora final, será esse desejo de inocência a fechar-nos os olhos.

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Áudio: Trabalhos técnicos de Ricardo Lima – Rádio UEL.

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