Descobri que não estamos assim tão juntos. Tão carne e ossos. Tão unha e dedo. Há algo irreconciliável entre mim e meu corpo.
Domingo. O santo Domingo. Coisa rara, fiquei sozinho em casa.
Pensei em chamar um amigo. Ir visitar a mãe.
Não, vou ficar sozinho. Só comigo mesmo.
Tampouco. Não quero ficar só comigo mesmo. Para isso precisamos olhar para dentro. Com os ouvidos, com a boca, com a pele, não apenas com os olhos. Até com o pensamento.
Cara isso é muito arriscado.
Por fim resolvo ficar só, sozinho com o meu corpo. Nada de mente, espírito ou outros ares. Sem pensamentos. Só eu e o meu corpo.
Neste punhado de décadas, somente ele esteve sempre comigo. Meus pensamentos mudaram, foram-se, criaram-se. Meu espírito transformou-se, se é que eu tenho algum.
Mas o corpo é esse, só foi dando uma esticadinha, depois uma arredondadinha. Mas afinal é ele que me acompanha desde antes de eu nascer. E é ele que vai estar comigo até meus pensamentos apagarem-se, até o espírito virar um sopro por aí afora.
O pensamento e o espírito eu não sei para onde vão. Só o corpo. Esse corpo que não me abandonou nunca.
“… você é o meu corpo
e nós estamos juntos
nessa
e em todas, enquanto eu viver.”
Decidido, fiquei nu. Não consegui ficar completamente nu. Algo dos meus pensamentos vestiam partes do meu corpo. Hora aqui, hora ali. Um véu de despudor. Uma névoa de desconhecimento. Algo assim.
Pensei em dizer ao meu corpo tudo o que tenho a dizer. O acumulado destas décadas.
Enrosquei.
Por fim só saiu uma frase: meu velho, vamos estar juntos até o final.
Meu corpo corou de vergonha. Que injusto, pensei. Eu que falei essa pasmaceira e meu corpo que se envergonha.
Descobri que não estamos assim tão juntos. Tão carne e ossos. Tão unha e dedo. Há algo irreconciliável entre mim e meu corpo.
Resolvi vestir roupas e caminhar ao sol de domingo com os fones cuspindo barulhos ouvidos adentro.