LÁGRIMAS DE ÁLCOOL GEL.

Deixem-nos prantear nossos mortos com choro, com gritos de desespero.


Pintura de Silvana Pachêco, artista plástica de Angicos, RN.

Ao ver o número de mortes pela pandemia, tudo parece ser só mesmo números. Mas agora perdi um amigo, contaminado pelo coronavírus. Fica sendo bem aquilo de que milhares de mortos são estatística, mas um morto conhecido é uma tragédia. Não há o que fazer, é ir ao velório e prestar a última homenagem, consolar a família, deixar claro que sofremos juntos. Não, não pode. O velório é restrito. Apenas os parentes mais próximos. Fico perplexo. Não sei se envio uma coroa de flores ou simplesmente deixo pra lá, que os mortos enterrem os seus mortos.

Olhe que isso de honrar os mortos, os antepassados, talvez seja o mais universal dos valores. Muita coisa que é válida aqui, não é válida em outros cantos do planeta. Mas todas as culturas, atuais ou já extintas, de uma forma ou de outra, tiveram ou têm como valor o respeito aos seus mortos. Agora não posso ir ao velório do amigo.

Telefonei para o irmão do finado. Ouvi o que não queria, mas compreendi. Depois de três semanas sem poder visitá-lo, ouvindo que, na UTI, estavam fazendo tudo o que podiam, todo esse tempo enfrentando a dor, já não restam lágrimas aos familiares. O irmão dele me diz, que deixemos assim, descansou.

Impossível não lembrar de velórios de outros tempos quando chorar, gritar, bater nos peitos, arrancar os cabelos, nada disso era sinal de fraqueza. Esse esconder a dor, ter um morto na família, quase vergonha. Antes passávamos todas as fases do luto, até que meses, anos depois, chegava a aceitação. O tempo curando tudo. Agora, com a Covid, sou obrigado a já de saída, aceitar a morte do amigo. Nem posso soltar aquele “não é possível”, negar a morte dele por uns instantes para que eu possa ir aceitando a ideia. Negociar com a morte, dizer que deve ser outra pessoa com nome parecido, estas artes do pensamento. Nas mídias sociais já vem a informação, o nome, a foto, a inequívoca notícia completa. Tampouco vou poder visitar a mãe dele após o enterro. Ela é idosa, grupo de risco. No máximo um telefonema, a maior cara de pouco caso de uma ligação. Nem missa de sétimo dia. Aglomerações são perigosas.

Vou fazer o quê? Virar a página como se nunca o tivesse conhecido. Apagar as fotos em que estamos juntos, nunca mais pronunciar seu nome, não pensar nele. Não vai ser possível.

Queria mesmo era, esta noite, avistar uma estrela cadente, para fazer um pedido. Deixem-nos morrer em paz. Deixem-nos prantear nossos mortos com choro, com gritos de desespero. Permitam um abraço coletivo à beira do túmulo. Não queremos lágrimas desinfetadas, pasteurizadas no álcool em gel.

Áudio: tabalhos técnicos de Elias Vergenes, UEL FM.

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