A TITIA QUERIA DANÇAR.

O convívio com um doente pode nos trazer pensamentos sobre as relações humanas e os sentimentos de empatia e solidariedade.


Fui visitar uma tia doente. Para isso tive que passar por 500 km de rodovia e mais de hora chacoalhando os ossos numa estrada de terra, lá nos confins do oeste catarinense.

A titia nunca deu assunto pro diabetes guloso que acabou por comer-lhe a visão e os rins. Agora ela diz que não quer mais, três vezes na semana, viajar pela estrada sem pavimento e fazer a hemodiálise na cidade próxima. Este foi o motivo da nossa viagem.

A família toda estava lá, febril com a desistência dela. Cada qual diagnosticando e receitando o que acha que os outros devem fazer. Eu ali, comatoso, quieto. Ninguém conversava com a tia, embora ela estivesse sentada entre nós, na sua cadeira favorita.

Nós deveríamos era transmitir apoio, deixar claro que o tratamento não é para a diabetes, é para nós, para que continue conosco mais um tempo, já que ela é importante para todos. No tratamento dela estamos buscando é a nossa saúde.

Revirei meus armários procurando algo para dizer, mas não temos um arsenal de palavras adequadas para as pessoas que estão muito enfermas. Nos faltam recursos.

Temos palavras apropriadas nos momentos felizes. Festejamos juntos, mas não sabemos compartilhar o sofrimento dos outros. Não conseguimos estabelecer empatia, solidariedade.

Eu também não consegui dizer nada. Sentado ao lado da tia, tudo soava ridículo e inapropriado. Peguei na mão dela, apertei forte e silenciosamente. Ela murmurou o meu nome. Lá na noite dos seus olhos, ela sabia que era eu; sabia que entre todos, só podia ser eu. Envaideci. O sol tomou seu rosto, despertando o espírito. A mão dela aqueceu rápido. A tia ficou ainda mais alheia à conversa, à balburdia que se fazia na sala. Eu e ela conversávamos pelas mãos. Então ela começou a movimentar o tronco, lentamente, para frente e para trás, como se estivesse sendo embalada por uma canção que o contato com a minha mão fazia soar dentro dela.

O que há de tão difícil em tocar ou acariciar o enfermo? Fazer com que sinta que ainda nos pertence, que temos afeto pela sua pessoa, um importante para nós.

A titia não está só doente, antes está isolada e só, apesar de cercada por tantos familiares, envolvidos com seus próprios barulhos. Mesmo fisicamente tão próxima de tantas pessoas, sente é o peso que se tornara para todos.

Aí surgiu a ideia mais dolorida. Foi um calorão, uma febre, uma convulsão lá nas minhas circunvoluções cerebrais.  A titia não quer interromper o tratamento. Quando ela diz que está cansada que não quer mais aquilo, está se referindo à solidão e ao isolamento que vem experimentando. O diagnóstico da barulhenta parentela está equivocado.  Ela está dizendo para interromper o tratamento físico, o tratamento médico, pois não crê ser disto que está precisando.  Enquanto todos focam nos procedimentos físicos ela padece do espírito.

Não é a diabetes a sua doença. É a solidão que lhe impuseram por conta da enfermidade. Ela só quer um aperto de mãos todos os dias, um abraço, para que, por alguns instantes, embalada pela melodia desse carinho, ela possa dançar em meio a escuridão da sua cegueira, agora iluminada pelo simples calor de outra mão dançando com a sua, ao som de uma melodia inaudível.

Áudio: trabalhos técnicos de Elias Vergennes – FM UEL.

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