O ÚLTIMO ANIVERSÁRIO.

Não quero dar-me por morto; ainda há um tantinho de resfolegar que me cabe.


Despertei nessa manhã sonolenta com a clareza de que hoje é meu último aniversário. Essa certeza despregou-se do travesseiro junto com as minhas orelhas. Em minha defesa preciso argumentar que ainda nem perdi a vergonha da morte. Nem sei como apresentar-me a esta infalível senhora. Ela que não tem pressa e nunca atrasa. A que não espicha o serviço para depois.

Fico a pensar que se eu passar, tudo bem, não vejo mesmo nada do lado de cá. E haverá algo do lado de lá? Talvez somente o aconchego de escuros e silêncios.

Que morte terei, não sei. Imagino que não seja por furo de bala, por rasgo de faca, nem estrangulo de mãos. Mais provável um fatal lacerar de palavras mal cuspidas a estrelar céus de bocas despudoradas. Assim morre-se mais.

Buscando decidir o que aproveitar do que me resta, resolvo que a minha história, essa eu gostaria que ficasse. Porém ninguém quer ouvir minhas insignificâncias. Faço pé de que vou contar tudo a mim mesmo, em alta voz. Assim os ecos, ao menos, ficam vagando por aí, a assombrar as pessoas que nem vão ouvir minhas poucas glórias e exuberantes desvantagens. Encenarei um decrépito monólogo, para plateia nenhuma, com o título: o último dia da minha vida. Assim mesmo, pobre de criatividade como foi meu viver. Como é o meu viver. Não quero dar-me por morto; ainda há um tantinho de resfolegar que me cabe.

No balanço de passa régua, minha vida vai virando uma casa feita de desdém; cada tijolo de frustração amalgamado por tristeza, até formar paredes que sustentam um telhado de desilusões a sombrear um pavimento de quadriculadas humilhações.

A alegria de saber de antemão qual o seu último aniversário, possibilita esse desenho de vontades: apregoar a vida que descubro nem ter vivido.

Áudio: trabalhos técnicos de Ricardo Lima, UEL FM.

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