Com a pandemia passamos a olhar o outro com olhos desconfiados. Como será depois que ela passar?
Pura fide = confiança pura, em latim.
Você assiste ao noticiário, acompanha as informações na internet, nas mídias sociais e parece que as pessoas estão cada vez distantes umas das outras. A ponto de, se nos perguntarmos qual o sentimento predominante entre as pessoas, acabarmos por responder que seja o de medo, o de suspeita. Mas não quero me conformar com essa aparência superficial e coloco os miolos para rodar.
Passo a observar o meu cotidiano, as minhas relações. No final fico assustado com o que mais percebi durante o dia. Andei por todo lado, fazendo muitas coisas, relacionando-me com muita gente, e acabo por concluir que o maior sentimento que tenho para com os outros, inclusive os que não conheço, é confiança. Assustador, não é? Confiança ser o sentimento predominante entre as pessoas, parece algo surreal. Muitas vezes parece que não confiamos nem mesmo nas pessoas próximas. Mas vou explicar meu ponto de vista.
Durante nossas atividades dependemos dos outros em várias situações. Peço um uber, um taxi, pego um ônibus ou mesmo embarco numa viagem aérea e a minha vida passa a ficar nas mãos de uma pessoa que não conheço e às vezes, que nem vi a fisionomia, como ocorre com o piloto do avião. Não sei que aspecto a pessoa tem, mas confio que ele está preparado, que tem equilíbrio emocional e que vai me conduzir em segurança até meu destino. Que garantia eu tenho? Quem sabe se esse piloto não descobriu na última noite, que é traído pela esposa, que tem uma doença incurável ou algo assim que justifique ele planejar um suicídio e levar outros junto? Só minha confiança no ser humano supera isso. Afivelo o cinto e relaxo.
Paro na lanchonete da esquina e peço um lanche. O funcionário, escondido na cozinha, pode ser que além de preparar o lanche, esteja revoltado com as contas que não pagou, com o salário pouco, com o mundo. Quem garante que não vai colocar veneno junto com o hamburguer? Só mesmo a minha confiança no ser humano que eu não vi.
Passo na farmácia para tomar a injeção de todos os meses. E se a louca da loirinha resolve fazer um teste e acrescentar alguma porcaria na seringa, quem me garante? A minha confiança na carinha branca dela, da garota que nem sei que música curte.
Ou seja, estamos a cada instante, nas mãos de alguém. E confiamos que vá fazer o seu trabalho sem nos prejudicar, sem maldades.
Nestes dias de pandemia, estou vendo outra cena nas poucas vezes que saio à rua. As pessoas estão com medo umas das outras. Evitam-se. O indivíduo que está pegando cebolas na mesma banca do supermercado, pode ser o cara que está contaminado. Não posso confiar em mais ninguém. O rapaz que faz o lanche pro delivery pode estar espirrando e contaminar meu lanche. A minha confiança nas pessoas, já era. Ou está em suspenso até acabar essa pandemia. Voltará a ser tudo igual depois disso. Será? Se perdermos a confiança nas pessoas, penso que perderemos muito. Algo que sempre teve um valor tão grande, que nem percebíamos que existia. Essas são as melhores coisas, as que nem percebemos, como o ar que respiramos, o respeito pelos nossos pais. Coisas invisíveis no cotidiano, mas quase sagradas.
Áudio: trabalhos técnicos de Elias Vergenes, UEL FM.